O novo que nasceu ultrapassado: reflexões sobre a revitalização de uma via pública urbana

Lucas da Silva Rudolpho
Resumo | A partir do caso da revitalização de uma via pública urbana, o artigo destaca a necessidade de se reavaliar o padrão das infraestruturas urbanas e de se investir em planos e projetos de infraestrutura verde, compatíveis com os desafios do século XXI. Abstract | Based on the case of the revitalization of a urban public street, the article highlights the need to reevaluate the urban infrastructures standard and to invest in green infrastructure plans and projects, this is compatible with the challenges of the 21st century. Resumen | A partir del caso de la revitalización de una vía pública urbana, el artículo destaca la necesidad de reevaluarse el patrón de las infraestructuras urbanas y de invertirse en planos y proyectos de infraestructura verde, compatibles con los desafíos del siglo XXI.
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O momento de crise em que vivemos, de surtos de doenças e necessidade de isolamento social, perda de biodiversidade, mudanças climáticas, escassez de água e energia, poluição do ar e das águas, e problemas de mobilidade urbana, reforçam a necessidade por mudanças na forma de pensar, planejar e projetar os espaços urbanos e, especificamente, as infraestruturas viárias urbanas.

Nesse cenário, foi entregue no último mês de julho de 2020 para a população de Luiz Alves, pequena cidade catarinense localizada à 130km da capital Florianópolis, região sul do Brasil, a obra de revitalização da sua principal via comercial (Figura 1).

Inaugurada com discursos demagógicos como: «[…] uma rua projetada para o século XXI»«[…] um novo cartão postal da cidade», a rua revitalizada renasceu ultrapassada, mesmo apresentando algumas melhorias em relação à sua condição anterior.

Como pesquisadores da área de Planejamento territorial e paisagístico e de Direito Público Administrativo brasileiro, sem interesses políticos — exceto aqueles relacionados à luta por cidades mais sustentáveis e democráticas —, entendemos que tipos de revitalização viária como esta, estão muito longe de poder ser considerados «projetos para o século XXI», pois:

a) «usa e abusa» de infraestrutura cinza monofuncional, a qual tenta controlar a natureza com materiais inertes, pouco ou nada permeáveis como concreto e asfalto, em uma área sujeita à alagamentos (Figura 2);

b) utiliza como única solução de projeto para resolver problemas de drenagem urbana, técnicas de engenharia do final do século XIX (sistemas canalizados), que objetivam se livrar das águas das chuvas o mais rápido possível, transferindo o problema para outros lugares (Figura 3);

c) privilegia o uso do transporte motorizado individual, com amplas vagas de estacionamento destinadas exclusivamente para acomodar veículos particulares (Figura 4);

d) não contempla ciclovias e ciclofaixas, tornando o espaço público menos democrático (Figura 4);

e) adota floreiras (com um único tipo de espécie vegetal ao longo de toda a extensão viária) ao invés de canteiros no solo com arborização nativa diversa, desperdiçando os múltiplos benefícios que as árvores no solo poderiam oferecer para as pessoas e para a biodiversidade, como: proteção contra os ventos; atenuação da poluição sonora; absorção da poluição atmosférica; sombreamento; diminuição das ilhas de calor e das temperaturas internas das edificações, com consequente redução do consumo de energia elétrica; filtragem das águas das chuvas e da poluição difusa proveniente das calçadas e vias pavimentadas (como resíduos de combustíveis, óleos, borrachas de pneus e outras partículas poluentes); redução do escoamento superficial e dos impactos das enxurradas e alagamentos; criação de habitats e corredores ecológicos para a fauna, entre outros (Figura 5); e

f) desperdiça a oportunidade de implantar redes de distribuição de energia elétrica e telefonia subterrânea, as quais poderiam fornecer maior segurança, redução das interrupções, menores custos com manutenção, melhoria estética da paisagem urbana, e a possibilidade de inserção de espécies arbóreas nativas de médio e grande porte, sem gerar conflito com as fiações (Figura 6).

Tipos de infraestrutura viária como esta, cinza, monofuncional e que tenta dominar a natureza, tem se mostrado insustentável, sobretudo sob o ponto de vista socioambiental e econômico, além de ser pouco diversa (biologicamente e esteticamente) e resiliente para suportar os impactos trazidos pelas mudanças climáticas (como frequentes ondas de calor, secas e chuvas cada vez mais intensas e prolongadas, escassez de água, inundações, deslizamentos de terra, ciclones, tufões e tornados) que já estão ocorrendo em todo o mundo (1).

Os efeitos desse excesso de infraestrutura cinza afetam não somente a saúde da natureza, mas também a saúde das pessoas. Estudos mostram que os índices de doenças físicas e mentais como obesidade, pressão alta, ansiedade, depressão, síndrome do pânico e câncer, aumentam à medida que as cidades crescem e se tornam mais cinzentas e globalizadas. As causas são várias, como falta de contato diário com a natureza; alimentação inadequada; e sedentarismo, causado, dentre outros motivos, pela cultura do automóvel e pela dependência do seu uso em estruturas urbanas que distanciam áreas de trabalho, lazer e moradia (2).

Diante desse quadro, é necessário que a administração pública municipal avalie os impactos dos seus projetos e decisões, considerando os princípios da prevenção e da precaução ambiental, social, econômica e cultural (3); e que reavalie o padrão das infraestruturas que vêm sendo implementadas no Município, investindo em planos e projetos de infraestrutura verde (4) (com arborização viária, pavimentos permeáveis, jardins de chuva, canteiros pluviais, biovaletas, ruas verdes, entre outras tipologias multifuncionais, que mimetizam os processos naturais), compatíveis com os desafios do século XXI, período de alterações climáticas e eventos extremos, de enormes riscos, vulnerabilidades e incertezas.

notas

(1) De acordo com o relatório «Counting the cost 2019: a year of climate breakdown», divulgado pela ONG britânica Christian Aid, fenômenos meteorológicos extremos alimentados pelas mudanças climáticas atingiram todos os continentes do mundo em 2019, resultando na morte e no deslocamento de milhões de pessoas, e em perdas econômicas de 140 bilhões de dólares. Disponível em: https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/Counting-the-cost-2019-report-embargoed-27Dec19.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.

(2) Herzog, Cecília Polacow. Cidades para todos: (re)aprendendo a conviver com a natureza. Rio de Janeiro: Mauad X: Inverde, 2013.

(3) Os princípios da prevenção e da precaução são considerados fundamentais para o planejamento e execução de políticas públicas municipais, dentre elas, as de infraestrutura urbana. No que tange a esses princípios, Freitas (2015, p.199) atenta que a administração pública deve ser «[…] preventiva, precavida e eficaz(não apenas economicamente eficiente), eis  que comprometida com resultados compatíveis com os indicadores de qualidade de vida, em horizonte de longa duração». Freitas, Juarez. As políticas públicas e o direito fundamental à boa administração. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC. v.35, n.1, p.195-217, 2015.

(4) A infraestrutura verde consiste em uma rede interconectada de áreas naturais e outros espaços abertos tratados paisagisticamente que visam mimetizar os processos e ciclos naturais, desempenhando funções infraestruturais relacionados à drenagem urbana, conforto ambiental, purificação da água e do ar, conservação da biodiversidade, mobilidade, lazer, imagem local, entre outros (Cormier; Pellegrino, 2008). Cormier, Nathaniel S.; Pellegrino, Paulo Renato Mesquita. Infra-estrutura verde: uma estratégia paisagística para a água urbana. Paisagem e Ambiente: ensaios, n. 25, p. 125-142, 2008.

sobre os autores

Lucas da Silva Rudolpho é Arquiteto Paisagista e Urbanista, graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Regional de Blumenau (FURB) e mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atualmente é doutorando no Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É pesquisador nas áreas de Arquitetura da Paisagem, Ecologia de Paisagens e Soluções Baseadas na Natureza. E-mail: lucarudolpho@gmail.com

William Ivan Gallo Aponte é Advogado, graduado em Direito pela Universidade Externado da Colômbia. Atualmente é mestrando no Programa de Pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e professor pesquisador da Universidade Externado da Colômbia. É Membro da Associação Iberoamericana do Direito da Regulação e vice-presidente da Rede Juvenil Iberoamericana de Direito Administrativo com sede no México. E-mail: williamg.aponte@gmail.com

como citar

RUDOLPHO, Lucas da Silva; GALLO, William Ivan. O novo que nasceu ultrapassado: reflexões sobre a revitalização de uma via pública urbana. In: ARQA Comunidad, sep. 2020. Disponible en: https://arqa.com/comunidad/obras/artigo-de-opiniao-o-novo-que-nasceu-ultrapassado-reflexoes-sobre-a-revitalizacao-de-uma-via-publica-urbana/

Información de la obra

  • Estado: Obra realizada

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